“Entre o desejo e a tradição: Andréa Weber fala sobre a atualidade e a intensidade de ‘A Casa de Bernarda Alba'”

Picture of Autor
Autor

A Companhia da Escola Nacional de Teatro (Cia da ENT) estreia uma nova montagem de “A Casa de Bernarda Alba”, peça clássica de Federico García Lorca, dirigida por Andréa Weber. Conhecida por suas produções que exploram questões sociais profundas, a companhia traz para o público uma obra que dialoga diretamente com temas universais como repressão, desejo e autoritarismo. O espetáculo, em cartaz no Teatro da ENT, em Santo André, é um mergulho nas tensões emocionais e sociais que continuam a ressoar fortemente no mundo contemporâneo.

Andréa Weber compartilhou conosco suas reflexões sobre o processo de criação, os desafios da direção e a relevância atual da obra.

COMO FOI O PROCESSO DE TRADUZIR OS ELEMENTOS CULTURAIS E HISTÓRICOS DA OBRA ORIGINAL PARA UMA MONTAGEM QUE CONVERSA COM O PUBLICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO ?

“Num primeiro momento, me dediquei a mergulhar no contexto espanhol da época – nas músicas, nas artes plásticas e na biografia do Lorca. Mas durante o processo de montagem, percebi que meu interesse não estava em retratar aquele lugar e tempo específicos, e sim em criar um espetáculo atemporal. Eu queria que as pessoas assistissem e se lembrassem de suas avós, ou imaginassem onde, nos rincões deste país, ainda existem pessoas vivendo dessa forma. No final, nossa versão da peça não tem data nem lugar, embora o texto original reflita uma Espanha muito específica.”

E COMO ESSA ESCOLHA IMPACTOU O TRABALHO DE CONSTRUÇÃO CÊNICA E VISUAL?

“Na interpretação, priorizamos as relações entre as personagens e o texto. A visualidade se afasta do realismo. Vitória Micheloni desenvolveu um cenário mais simbólico, enquanto os figurinos foram feitos com referências de bordados, crochês e texturas, seguindo o conceito de upcycling e moda circular. O único figurino com tecido comprado pra se costurado do zero foi o de Bernarda, sem a influência do upcycling.”

A OBRA ABORDA A REPRESSÃO DE DESEJOS E A OPRESSÃO ENTRE MULHERES, REFLEXO DE UM PATRIARCADO ESTRUTURADO. COMO VOCÊ TRABALHOU ESSA DUALIDADE NA DIREÇÃO?**

“Escolhi focar na opressão entre as mulheres. As ações e discursos da Bernarda já são suficientes para provocar reflexões. Nosso desejo era que o público fizesse as conexões entre o patriarcado e como ele é reproduzido, inclusive por mulheres. Não quis escancarar isso na encenação, porque acredito que o público tem a capacidade de chegar a essas conclusões sem precisarmos ‘levantar cartazes’, como costumo dizer.”

E COMO O ELENCO LIDOU COM AS EMOÇÕES INTENSAS DA PEÇA, ESPECIALMENTE EM RELAÇÃO À REPRESSÃO DOS DESEJOS DAS FILHAS DE BERNARDA?

“Trabalhamos com práticas e exercícios que permitiram às atrizes fazerem contato com essas sensações ainda na sala de ensaio. Utilizamos técnicas de Michael Chekhov, Stella Adler e pesquisas que venho desenvolvendo sobre relações energéticas na atuação. Foi um processo profundo, que ajudou a transpor essa carga emocional para a cena.”

VOCÊ MENCIONA A INTENSIDADE EMOCIONAL DO TEXTO. QUAIS FORAM OS MAIORES DESAFIOS AO DIRIGIR UMA OBRA TÃO CARREGADA DE SIMBOLISMOS E EMOÇÕES?

“O maior desafio foi aceitar que eu não queria seguir o estilo ‘lorquiano’ tradicional. Normalmente, espera-se algo carregado em estilo, maquiagens e vozes distintas. Eu queria expor uma situação dramática, vivida por mulheres que encontramos no cotidiano. Não queria que elas estivessem sempre de luto, vestidas de preto, apenas porque a tradição exige. Quando aceitei isso, o trabalho fluiu naturalmente. E, claro, contar com uma equipe intensa fez toda a diferença.”

EM TERMOS DE TEMAS, O QUE VOCÊ ACREDITA QUE RESSOA MAIS COM O PÚBLICO HOJE?

“A privação de liberdade. Esse é um aspecto que ainda é muito latente. Mulheres que não podem se vestir como querem ou escolher seus maridos, ou ainda se querem se casar… Uma mulher de classe média em uma metrópole pode não sentir isso, mas se você circular por diferentes camadas sociais e culturais do Brasil e do mundo, verá que a liberdade feminina ainda está longe de ser total.”

A PEÇA FOI CONTEMPLADA PELA LEI PAULO GUSTAVO. COMO ESSE APOIO INFLUENCIOU A PRODUÇÃO?

“Influenciou muito. É sempre melhor ter algum recurso do que nenhum. Porém, a Lei Paulo Gustavo foi uma medida emergencial, e sabíamos que o valor do edital era insuficiente para uma produção do porte que gostaríamos. Mas, ainda assim, a lei deu um impulso importante para a cultura na cidade, com muitos eventos e produtos culturais florescendo no pós-pandemia.”

O ISOLAMENTO DAS PERSONAGENS NA CASA DE BERNARDA É TANTO FISICO QUANTO EMOCIONAL. COMO VOCÊS TRABALHARAM O USO DO ESPAÇO E DO SILÊNCIO PARA INTENSIFICAR ESSA SENSAÇÃO DE CONFINAMENTO?

“Tivemos alguns ensaios em salas menores, fora do nosso teatro, para intensificar essa sensação de espaço reduzido. Fizemos exercícios em duplas mais intimistas, explorando proximidade e o silêncio. Quando vi o cenário montado no palco pela primeira vez, percebi o quão sufocante ele poderia ser. Isso contribuiu muito para o clima de confinamento que queríamos transmitir.”

O PÚBLICO PODE ESPERAR ALGO SURPREENDENTE NESSA MONTAGEM, MESMO COM A CIA DA ENT JÁ TENDO LOTADO SESSÕES DE SUAS PRODUÇÕES ANTERIORES?

“Sim, sempre buscamos trazer novidades em nossos trabalhos. Embora a Cia da ENT esteja construindo uma história de sucesso, cada montagem é única e lidamos com a expectativa do público sobre as novas montagens. Mesmo com diretores recorrentes, como eu e a Giovana, nós nos desafiamos a diversificar. No ano passado, dirigi um épico, e agora trago um Lorca mais centrado no texto. Então, certamente haverá surpresas.”

Com essa nova montagem de **”A Casa de Bernarda Alba”**, Andréa Weber e a Cia da ENT oferecem uma reflexão poderosa e atemporal sobre opressão, desejo e o impacto do patriarcado, mantendo o público cativado e refletindo muito além do último ato.

O espetáculo está em cartaz nos sábados de outubro às 20h no Teatro da ENT (Rua Cel. Agenor de Camargo, 514) no Centro de Santo André. E sim, esse espetáculo também está esgotando sessões, garanta seu ingresso antes de sair de casa